terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Ser chef é uma carga enorme, mas tem o lado bom…

Quase todos os textos que escrevo, acabo contando agruras e problemas que chefs enfrentam no seu dia a dia.
Hoje, comecei pensando….E o lado bom disso?

Ah, acreditem, tem muitos. Acordar e ver um dia bonito é uma delas. Pra quem mora na frente do mar e tem restaurante idem, isso é uma quase certeza de haver mais clientes. Dá um ânimo danado quando isso acontece.

São apenas dez pras seis da manhã, mas estou em pé, olhando a estrela-mãe saindo devagar por de trás das ondas. Saio com o dog. Outro prazer que tenho e vejo que só existe eu no mundo. Ninguém está ali para aplaudir essa maravilha.

Sim, maravilha, porque fazem dias que só vejo nuvens cinzas e uma garoa que vai me corroendo por dentro. E os negócios, também. Uma cidade turística precisa de sol. Precisa de calor. Precisa de gente disposta a sair da frente da televisão.

Termino o passeio e, ao voltar, uma fumegante xícara de café me espera. Minha cocaína, meu vício. Enquanto bebo, encho o regador e começo a aguar minha plantas. Adoro plantas, mas sou interesseiro. Elas não estão ali somente pra enfeitar. Eu as como. Eu as sirvo.

São inúmeros vasos. Tomilho, salsa, cebouletes, sálvia, etc., e um monte de flores como a capuchinha, as violetas, as begônias, tudo comestíveis. Salve a cravinia, o borago, a os brotos de beterraba, couve, rúcula. São um presente que recebo por tanto cuidado e tempo que deixo de dormir para cuidar de vocês.

Visto-me e venho para o trabalho. Bem, trabalho, em termos, tá mais para diversão. Que absurdo dizer isso. Quem se diverte trabalhando ? Eu.

A cada passo, vou pensando em como começar, em como receber meus auxiliares, meus colegas, minha trupe e o que vamos fazer hoje para fazer gente satisfeita, gente feliz.  Parece altruísmo gratuito, mas na verdade é parte do pagamento.

Ver meus pratos sendo admirados, fotografados, receber elogios, não enche conta bancária, mas dá uma satisfação enorme e faz o ego saltar. É preciso certo cuidado para ele não te dominar.

Isso tudo é apenas o começo.

Ligo as luzes e lá está ela, silenciosa, brilhante, limpinha, pronta para fazer exatamente o contrário.
Ligo as coifas, o combinado, começam os barulhos, as conversas, as ordens. Tão bom ter uma brigada que é estável, se dá bem, que segue tuas ordens, não por que você mandou, mas por que você os convence que aquilo é o correto, o melhor e o mais viável de se fazer.

Escuto um chamado e vou para o andar de baixo ver como as coisas estão na padaria, no coffe break. O cheiro do pão assando é como música. Anima, assim como o expresso, forte e quente que pedi que preparassem pra mim.

As faxineiras dizem bom dia e me dão um sorriso. Elas não fazem isso porque sou chef e sim porque as trato como igual, faço-as participar de todas as coisas boas que fazemos. Acho que esse estilo de tratamento deveria ser uma norma, uma lei, pois tudo flui melhor. E tem gente que ainda não sabe disso. Talvez quase toda a humanidade.

Nas mesas da cozinha, jazem inúmeros vegetais, limpos, cortados a perfeição. O que era um corte Julienne é um corte Julienne perfeito. Custou tempo, mas aprenderam. E isso me faz sorrir. As carnes sendo limpas e porcionadas, algumas já indo para a seladora e mergulhando fundo na cuba de sous vide. Lindo de ver e saber que o resultado fará clientes satisfeitos.

Ser chef é uma carga enorme, mas tem o lado bom. Nem sempre enxergamos, mas ele existe. Surgem os primeiros cheiros. Nada como a cebola e o alho fritando no fundo da panela de arroz. Lembra minha infância, lembra minha saudosa mãe. O tal comfort food tem sua expressão máxima nisso, para mim, pelo menos.

Muita gente pensa que mesmo em restaurante que serve menus de degustação não fazemos arroz, um feijão, uma simples salada. Pode ser no restaurante do barbudo mas, no meu, tem. E tem porque, invariavelmente, tem algum cliente que, ao ver aquele cubo de carne solitário no prato, apenas acompanhado de um molho, precisa de um arrozinho para acompanhar.

Seria uma coisa errada, mas se um cliente pedir, o errado seria não lhe ofertar. E se chegar à mesa, tem que ser o melhor arroz do mundo. Nada causa mais prazer a um chef do que estar envolto nas suas atribuições, quando elas dão todas certas. Demora um tempo para azeitar uma equipe, tanto de cozinha, salão e a equipe de suporte, mas com o tempo acontece.

E chega perto das onze horas. Hora que preciso dispensar alguns integrantes para almoçar. Vão fazer falta, mas todo mundo precisa comer. Até quem faz comida o dia todo. Pros outros.

E começa a dar aquela tremedeira nos joelhos. Vai começar um novo serviço e tudo tem que ser 100% perfeito.
Alguns podem achar que a tremedeira é sinônimo de medo, de falta de experiência. Nada disso. Ela é salutar. Quando ficamos muito cheios de si e achando que tudo será perfeito, aí sim acontecem as besteiras.
Sempre me lembro do Lynch e ele nos restaurantes reina absoluto. O que pode dar errado, dará, disse ele.

Por isso temos que nos cercar de todas as certezas o tempo todo.

O primeiro cliente chega. No almoço, servimos a la carte e temos apenas oito opções. Parece pouco, mas tem montagens que têm 28 ingredientes e cada um passou por um tratamento uma técnica diferente.

Pede o segundo prato do menu. Ótimo, fácil e simples de montar, mas isso só foi possível por que o mise en place foi feito com todo carinho e cuidados. Minha auxiliar finaliza a proteína e traz para mesa de montagem, onde estou atendo a todos os detalhes que compões esse prato.

Que lindo poder ver aquela montagem do jeito que sempre imaginei, que fiz, que arquitetei. É um prazer, quase um orgasmo. Se você já não tem isso, tá na hora de pensar em mudar de emprego.

Cada montagem é uma filha que merece todo cuidado e, ao olhar uma linha com vários pratos e ver aquilo na sua frente pronto pra marchar não tem Visa que compre. Voltaram todos vazios, avisa meu pia. Sorrio, pois prato limpo é sinônimo de aceitação.

Uau, a boqueta começa a ficar cheia e o nervosismo salutar faz com que o suor comece a tentar aparecer, mas ele não dá medo, dá ânimo. Se não há lugares vazios nas mesas é por que estou fazendo a coisa certa. Claro que muita coisa acaba por dar errado. Sempre tem alguma falha em equipamentos, na falta de ingredientes que pedimos. Há falhas humanas. Algumas minhas, também.

Sumiu uma pinça !!! Dou risadas quando a auxiliar me diz que está pendurada na minha dólmã. Sempre é assim. Parece chavão de comédia.

Olho para o relógio e vejo que chega quase três horas. Onde colocaram as últimas quatro horas ??? Como passaram rápidas essas horas !!! Acho que é assim pra todo mundo quando a gente está fazendo o que gosta. Nem sente o tempo passar.

Porém, nada de folga. O jantar, às 19h30, vem pela frente. E o trabalho é muito, mas muito maior. Temos reservas. Quase todas mesas ocupadas. Isso é bom. Trabalhoso, mas bom.

Corre a fazer a arrumação do almoço. Tudo lavado, higienizado e começamos o mise em place. Essa preparação é tão importante em uma cozinha que nada daria certo sem ela.

Olhos de lince para ver se tudo está perfeito. Os peixes que chegaram de manhã, alguns vegetais, pétalas, etc, já foram porcionados, higienizados e semi-preparados na manhã. Alguns até ontem. Sim, tem algumas coisas, principalmente molhos, que de um dia para outro ficam ainda melhores. Apuram, dizia meu pai.

Seis horas e o jantar da equipe precisa sair. Hoje tem lasanha. Quase todo mundo gosta. Dou risada, mas tenho que entender que muita gente gosta de misturar lasanha com arroz e feijão. Cada um tem seu gosto.

Conversamos sobre o almoço que passou e o que virá amanhã. Adoro sentar junto a todos, assim me sinto integrante da brigada. Tenho colaboradores e não funcionários, auxiliares.  Cada um tem sua importância vital e sabem disso.

Dois anos com a mesma equipe, tanto cozinha e salão, quanto suporte, acabam criando laços e amizade, fidelidade e até amor. Minha mulher estava na equipe dois anos atrás.

Meia hora se passou e voltamos à cozinha. Nada pode passar batido, sem inspeção, sem o apuro que preciso para manter o meu trabalho. Nem no salão, onde os garçom medem as distâncias das mesas, colocam as taças e copos, e verificam a limpeza geral. Tudo tem que estar agradável, cheiroso, limpo.

Há coisa diferentes. Sim, algumas vezes tenho que mudar alguma coisa, pois nem sempre está a mão tudo que queremos. Hoje eliminarei certos brotos por que estão meio oxidados. Cabe ao chef estar sempre atento a essas coisas. Nada pode ser mais ou menos.

A ‘host’ avisa que chegou a primeira mesa. Oito pessoas. Entrées e amouse bouches são mandados para deixar os clientes tranquilos e menos ansiosos.

Olho e vejo os purées no banho maria, os gelées, as carnes, minhas caixas de adereços (flores e brotos) e está tudo em ordem. Ah, que satisfação poder contar com uma equipe forte, que se ocupa de manter os pequenos detalhes, tão fundamentais, mas que muitas vezes são relegados.

O cheiro da cozinha é agradável nessa hora. Sinto cada aroma.  A experiência nos traz algumas vantagens. Ao ouvir um filé tocando na chapa, o crepitar da gordura borbulhante é suficiente para saber que a temperatura está correta.

Um pedido inusitado e fora do cardápio. Um adolescente que acompanha a família está com vontade de comer uma omelete francesa que comeu aqui mesmo, no domingo pela manhã.

Por que não? Atrapalha, mas ver que podemos satisfazer a contento um cliente, é motivo de orgulho e satisfação.

É uma loucura quando o salão enche. A mesa dois está no tempo seis, mas a mesa cinco está no tempo três e por aí vai. Se não fosse meu monitor gritando letras e números na minha cara eu me perderia, com certeza. E a fileira de pratos vai diminuindo, só restam alguns clientes, mas eles estão na sobremesa.

Sempre digo que o jantar ou almoço devem ser excelente, mas a sobremesas devem ser excepcionais. São elas que ficam na memória, no retro-gosto do comensal quando ele vai embora. Que prazer montá-las. Adoro essa parte.
Uma parte mais fria, de menor temperatura, pois monto em uma sala adjunta a cozinha, mas que tem temperaturas muito mais baixas, ou não seria possível fazê-las direito.

E termina o serviço do dia. Em termos. É preciso deixar tudo em ordem, limpo, higienizado e perfeito por que amanhã tem mais, obviamente. Nessa hora, alguns risos, algumas reclamações, algumas conversas fazem parte. E é tão bom poder ver todo mundo, mesmo cansado, alegre.

Nada dói mais meus ouvidos que desligar as coifas. O silêncio é ensurdecedor, doído. Loucuras de um ser que respira, sonha e vive isso, todos os dias dos últimos 27 anos.

Entro no carro e volto pela avenida que margeia a praia. Escuridão total, apenas umas lampadazinhas acesas dos barcos pesqueiros que estão indo para o alto mar. Penso em como sou feliz de estar indo descansar, mas enalteço quem está indo buscar parte do meu trabalho na madrugada em que estarei dormindo.

Ao chegar em casa, meu cão pula fazendo a maior festa, enquanto vejo o sorriso da minha mulher, feliz por eu chegar. Ela sabe que amanhã será igual. Sairei bem cedo e só voltarei bem tarde da noite.  Ainda bem, pois parte disso só seria possível com sua compreensão.

Tomo meu banho e, às vezes, como alguma coisa, pois dificilmente como alguma coisa quando o serviço começa.

Vou ao computador responder a mensagens, ver minha agenda de cursos, pagar contas domésticas, baixar algum seriado que acabo nunca vendo. Deito e começo a pensar.

Tem gente que trabalha sentada, no ar condicionado, usando roupas de grife cheirosas, tem secretárias que fazem quase todo seu trabalho, ganham muito mais que eu.

Mas eu não trocaria, nem por um segundo, minha vida pela delas.

Eu, Marcos Ripp Cozzella, chef. E feliz.

 

 

Texto: Marcos "Ripp" Cozzella

 

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