terça-feira, 11 de dezembro de 2018

A rotina de um cozinheiro

Entender a importância da gestão dentro da gastronomia, há muito deixou de ser preocupação somente de quem chefia uma brigada. A premissa existe em qualquer função e em qualquer ambiente. Das cozinhas mais simples até as mais equipadas. A rotina de um cozinheiro do século passado não é muito diferente da atual. O pensamento girava em torno da ideia de Henri Fayol: PLANEJAR-ORGANIZAR-LIDERAR-CONTROLAR. Juntamente com Taylor, Fayol foi precursor das abordagens clássica e científica da Administração, tão utilizadas por Escoffier na estruturação da cozinha profissional como conhecemos hoje.

Planejar

Assim que chega ao trabalho, o (a) profissional deve verificar seus equipamentos e utensílios. É o início do pré-preparo. Sabendo que na noite anterior fora ele quem fez a limpeza de sua praça, a prioridade ao chegar é conferir se as geladeiras, bocas de fogão, forno e fritadeira estão em perfeitas condições de uso. Esta checagem pode salvar dores de cabeça na hora do movimento.

Próximo passo é confirmar a chegada dos insumos solicitados no dia anterior. De forma geral, isso acontece de maneira rotineira com hortigranjeiros e mais espaçadamente com proteínas, farináceos, grãos entre outros. Esses são produtos que podem ser armazenados por um período maior e por isso são pedidos com espaços maiores de tempo. Já frutas, legumes e verduras têm validades menores e consumos praticamente diários.

Nem todas as cozinhas trabalham com 2 equipes. As que trabalham têm a vantagem de ter a equipe do dia recebendo, conferindo e armazenando. As que trabalham com 1 única equipe, muitas vezes dependem de um funcionário para o recebimento dos insumos, ou os recebem na primeira hora de trabalho da equipe (ou seja, a poucas horas da abertura da casa). Por isso é de suma importância que o (a) cozinheiro (a) entenda que quanto mais cedo o problema é detectado, mais chance terá de ser corrigido. Um pedido não foi entregue, ou está fora das condições de uso e quem recebeu não viu? Se for cedo, ainda há chance de reverter.

Organizar

Uma vez verificada a chegada dos insumos, é aconselhável cuidar das condições de armazenagem do estoque seco e congeladores. Alimentos mal armazenados no estoque podem gerar perdas e atrair vetores, como insetos e roedores. E congeladores com mal funcionamento podem arruinar meses de trabalho. A mesma coisa vale para geladeiras. Verificar a temperatura dos equipamentos e sua higiene é responsabilidade de toda a brigada.

Feito isso, a atenção se volta para o compromisso específico de cada cozinheiro (a) e, consequentemente, sua praça ou estação de trabalho. Normalmente dividida por grupos de alimentos ou áreas do cardápio, cada praça possui suas especificidades de produtos, validades e organização.

E não há outra forma de confirmar se a produção do dia anterior ainda está boa para o consumo, senão a experimentando. Datas de validade em etiquetas não são suficientes. Entenda, a geladeira pode ter oscilado de temperatura durante a madrugada, ou até mesmo ter faltado luz, portanto, não há como confiar somente nas datas.

Saiba que o maior instrumento de precisão de um cozinheiro é sua boca. Trabalhe seus sentidos. Você conhece aquele ingrediente como ninguém, pois trabalha com ele todos os dias. Então veja se está visualmente correto seu estado, depois sinta seu cheiro e por último seu paladar. Caso o produto tenha falhado em alguma fase, não hesite em descartar. Alimentos estragados podem levar uma pessoa ao óbito após poucas horas, em alguns casos.

Liderar

Pessoalmente, sempre fiz uma lista de pendências no fechamento da cozinha na noite anterior. Assim eu já dormia com essa lista na cabeça e mentalmente me organizava para o dia seguinte. E o tempo na profissão ensina muito sobre essa relação de produção e saída, fazendo você entender que um bom pré-preparo é aquele que não dura mais do que dois dias, pois você consegue interpretar o movimento da casa, estando cada vez mais seguro não só da sua rotina, como também da qualidade do seu trabalho, possibilitando inclusive perceber se um companheiro de equipe precisa de sua ajuda. Quando trabalhamos de maneira organizada, temos a oportunidade de ampliar a visão ao nosso redor, apoiando quem está do nosso lado, nos antecipando a possíveis problemas e exercendo uma liderança de qualidade.

Baseado no dia da semana em que está, é vital prever se a quantidade de insumos armazenada será suficiente, levando em consideração qualquer reposição emergencial.  O objetivo é ter o suficiente, bem armazenado e sabendo que pode descongelar (caso o ingrediente possa).

Controlar

Com uma praça de trabalho limpa, abastecida e organizada, é hora de pensar no fluxo de trabalho. Pois no momento que o restaurante abrir, aquele pequeno espaço na cozinha sob a sua responsabilidade deve ser o mais prático possível. Trabalhe somente com o essencial. Um plano de trabalho (tábua de corte polietileno), sua faca de chefe (faca multifuncional de normalmente 8 polegadas) devidamente posicionada com a lamina embaixo da tábua do lado oposto ao seu corpo, algumas colheres a mão, pinças e mais alguns utensílios que sua praça possa vir a demandar. Lembre que na hora do movimento, quanto mais espaço você tiver, melhor você irá trabalhar.
Um (a) profissional dentro de uma cozinha é medido pela sua higiene, organização, técnica e pelo seu espírito de equipe. Em geral, nesta ordem.

Essa é somente a rotina de um cozinheiro. Em paralelo, é importante entender que o estudo na gastronomia não deve parar em momento algum. Conhecer sobre mais técnicas, aprofundar-se naquilo que talvez não seja sua maior “especialidade” trará possibilidades futuras inimagináveis. Não gosta de confeitaria? Provoque-se a executar receitas de compotas com aquela fruta que está passando na gaveta da geladeira de casa… Panificação que não é sua praia? Comece criando seu levain! Não limpa um peixe desde a faculdade? Faz um esforço na sua folga e troca uma ideia no mercado do peixe. Não conhece muito de carnes? Fique amigo do açougueiro. Não há vergonha alguma em não saber algo. A busca pelo conhecimento lhe trará novos desafios, fazendo com que a rotina descrita neste texto seja sempre desafiadora. Não se esqueça de que um profissional apaixonado e com vontade de aprender é muito mais valioso do que um habilidoso, porém apático.

O tempo passará e novos horizontes se abrirão. E será justamente a soma de todos esses anos de experiência dentro de uma cozinha, quando bem aproveitada, que moldará todo um futuro profissional. Entendendo que não adianta ser o melhor cozinheiro de uma cozinha por muito tempo, pois a rotina irá consumir seus sonhos. Nunca seja o melhor da sua cozinha. Se isso acontecer mais de 8 vezes, abra seu restaurante!

Passando por todas as áreas, compreendendo a prática e o valor de cada função dentro do ambiente, um cozinheiro consegue se estruturar como um profissional completo, com uma capacidade de gestão específica e abrangente ao mesmo tempo. Mas, acima de tudo, saiba lidar com o outro. De forma respeitosa, gentil e profissional. Não sabemos as batalhas que os outros estão travando, nem as dificuldades que estão vivendo. Em uma cozinha, todos entram e saem pela mesma porta.

 

Texto: Gustavo Guterman
*Gustavo Guterman é Pós Graduado em Gestão em Segurança dos Alimentos pelo SENAC SP, Graduado em Gastronomia no centro de formação internacional Alain Ducasse Formation, Técnico em Cozinha pelo SENAC RJ. Experiência no mercado profissional, em cozinhas nacionais e internacionais, atuando como cozinheiro e chefe de cozinha em renomados estabelecimentos do segmento de alimentação e bebidas. Atualmente atua como coordenador de Gastronomia do Instituto Federal Fluminense. Professor nos cursos de Gastronomia e Hotelaria na citada instituição, exercendo consultorias e palestras na área. É também autor do blog (e página) Guterman Gastronomia, que tem por objetivo a divulgação de ideias, artigos e noticias sobre o mundo da gastronomia.
https://gutermangastronomia.wordpress.com
https://www.facebook.com/pg/gutermangastronomia/

 

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